Poetry is a deal of joy and pain and wonder, with a dash of the dictionary.
— Kahlil Gibran

Pequena biografia com pássaros


Numa biografia perdem-se os barcos. Entregam-se datas e lugares como se a vida de um homem fosse apenas uma cartografia de sinais. Será melhor dar a conhecer as circunstâncias de um itinerário ou as suas variantes? É, digamos, complexa a escolha. A primeira hipótese faz o registo da historiografia do indivíduo, contextualiza-o em certo tempo e espaço; a segunda, esclarecerá os efeitos e as causas de um percurso. Delineará, em suma, o seu perfil interior a partir das experiências vividas.

 Aqui não é lugar para tanto. Importam-me as raízes. Sou um estrangeiro — vim de África. Tenho, viva, a memória da minha casa, do meu corpo que era outro, do som da minha voz a correr pelos muros. Atrás ficaram pedras soltas do meu templo: o Guilherme, o meu irmão mais velho, os cães «Nero» e «Bobi», «Princesa», a gata que povoou o nosso quintal e o mundo. Ficaram os melhores anos da minha vida porque foram os primeiros.

 Um homem nasce também na terra que vem a conhecer depois, quando os calções da infância estão definitivamente arrumados no baú de outra idade.

Nasci em Angola, no Sul, numa pequena cidade (Gabela). Amava a sua melancolia, o cheiro do café em flor, a suavidade da neblina quando anoitecia, o cantar dos galos. A minha pele tinha o cheiro daquele lugar — das suas casas de adobe, da voz do meu pai rente ao vento e dos intermináveis cafeeiros de chuva.

 Venho também dos Açores, de uma rua onde a casa de minha avó desafia o tempo. Cresci um pouco entre aquelas paredes, ouvindo o mar e o rumor dos meus ancestrais. Minha avó Irene fazia tricô, lia, confrangida com a nossa energia africana. Fomos assim parar, eu e os meus irmãos, ao fulgor das olaias do quintal de meus tios, Veneranda e Guilherme.

Havia bonecos de barro, jarros altos e frescos junto das janelas, a mesa grande onde minha tia, generosa, repartia o pão e bebíamos o leite fresco do dia. Ouvia Beethoven no quintal de cima, juro, quando os melros cantavam.

Tinha sido uma casa majestosa, aquela. Um lugar onde as lágrimas caíam no último olhar, onde o Inverno adormecia de mansinho no chão de musgo. Tudo se foi menos a memória dessas coisas.

Sou um estrangeiro. Perdi os meus sapatos no deserto. Dormi em tendas de sol e areia. A pele secou-se-me com a aridez dos ventos. Mas amo o que tenho, o que se foi, e sou feliz entre os rios.